Sexta, 19 de Abril de 2024
   
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Dicotomismo ou Tricotomismo? Ora, Tenho mais o que Fazer!

Pastoral

“E, agora, que o Deus da paz os torne santos em todos os aspectos, e que o espírito, a alma e o corpo de vocês sejam mantidos irrepreensíveis até a volta de nosso Senhor Jesus Cristo. Aquele que os chama fará isso acontecer, pois ele é fiel” (1Ts 5.23-24).

Existe um debate no campo da antropologia bíblica que envolve duas “posições”: o dicotomismo e o tricotomismo. Os dicotomistas creem que o homem é integrado por uma parte material (o corpo) e uma parte espiritual (o espírito, também chamado de alma). Os tricotomistas, por sua vez, defendem que o homem é composto por três partes distintas: o corpo, a alma e o espírito. Obviamente, eles usam o texto acima citado para defender essa posição.

Pessoalmente, acho esse debate absolutamente irrelevante. A Bíblia não se ocupa desse tema em lugar algum e ninguém consegue apontar com clareza os desdobramentos teóricos e vivenciais (bons e/ou ruins) de uma vertente ou outra. Enfim, parece ser simples perda de tempo debater sobre essas coisas. De minha parte (se alguém quer mesmo saber), aceito uma dicotomia essencial (o homem é apenas corpo e espírito), entendendo que a alma é um fator ligado ao espírito, sendo a sede de seu intelecto, de suas emoções e de sua vontade. Sei, no entanto, que nem sempre os termos são usados assim na Bíblia. Por exemplo, às vezes a palavra “alma” é usada para se referir à pessoa integral (At 2.41). Sendo as Escrituras assim tão vagas nesse campo, prefiro não morrer brigando por algo a que ela dá tão pouca importância.

Em face disso, quero sugerir que o texto transcrito acima evoque nos crentes outros diálogos e  preocupações ― algo que vá muito além da briga Dicotomismo versus Tricotomismo. Quero propor que os crentes observem com o atenção o fato de que 1Tessalonicenses 5.23 descreve o conteúdo de um anelo de Paulo expresso em suas orações diante do “Deus da paz”. Esse anelo, como se vê aqui e em outros lugares, não envolvia os desejos que geralmente se manifestam em nossas súplicas. O apóstolo não ora, por exemplo, pela saúde dos tessalonicenses, nem pela vida financeira deles, nem tampouco para que seus empreendimentos e projetos profissionais deem certo. Não estou dizendo que orar por essas coisas seja errado. Porém, de um modo geral, ele pede apenas que seus leitores sejam santificados e permaneçam assim até o dia final.

Vamos, porém, mais devagar. Por que, ao se lembrar desse anelo, Paulo se refere ao Senhor como o “Deus da paz”? A resposta não é difícil. O bom apóstolo sabia que os tessalonicenses viviam num ambiente muito hostil ao cristianismo. Ao que se sabe, havia em Tessalônica uma forte comunidade judaica absolutamente avessa à mensagem cristã (At 17.1-2). Certamente, estimulados por aqueles judeus maus, os pagãos da cidade perseguiam os cristãos que viviam ali (1Ts 2.14-16; 2Ts 1.4)., Sabendo disso, Paulo quis trazer à memória dos crentes o fato de que o dono da paz é Deus e ele pode concedê-la ao seu povo, mesmo em meio às circunstâncias mais difíceis. E mais: se, de um lado, a tribulação que vinha dos maus tinha como alvo empurrá-los para os caminhos sujos da apostasia, a paz que vinha de Deus acompanharia a obra de santificação que ele podia realizar naquelas vidas.

Assim, aprendemos que, ao que tudo indica, a santificação do crente é realizada por Deus num coração que ele primeiro apaziguou, dando-lhe serenidade, firmeza e segurança em face das zombarias e injustiças que os perversos dirigem contra ele.

O versículo prossegue com Paulo expressando o desejo de que os seus leitores sejam santificados. Nesse trecho, ser santificado corresponde a ser mantido íntegro, intacto ou completo (o texto transcrito traduziu o termo como “irrepreensíveis”). O desejo de Paulo é que nada que agrade a Deus esteja ausente na vida dos tessalonicenses.

Em seguida, o apóstolo usa uma palavra traduzida como “em todos os aspectos”. O que ele tem em mente com essa palavra é definido na construção que vem a seguir: “O espírito, a alma e o corpo de vocês”. Qual é o sentido, afinal, dessa tríade? É preciso destacar primeiramente que o objetivo de Paulo, ao adicioná-la no texto, não era ensinar algo sobre a estrutura básica ou essencial do ser humano. De fato, esse tema pouco ou nada interessa ao apóstolo aqui, sendo infrutífero usar essa passagem para fazer especulações referentes à composição do homem.

Na verdade, o que se tem nessa tríade é apenas uma forma de ênfase. Paulo a usa somente para destacar a inteireza do ser humano. Trata-se de um recurso semelhante ao que se vê em Lucas 10.27: “Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de toda a sua força e de toda a sua mente”. Esse texto não divide o ser humano em quatro partes. Apenas enfatiza o dever de amar a Deus de forma completa, com tudo o que somos. É o que podemos chamar de “policotomia de ênfase”.

O desejo-súplica de Paulo, portanto, é fácil agora de se entender: ele almeja que os crentes sejam visitados pelo Deus doador da paz, de maneira que, mesmo vivendo numa sociedade hostil, eles experimentem sua obra santificadora de forma completa, não havendo nenhum espaço em branco na vida deles (exterior e interior) que não seja preenchido por aquilo que se harmoniza com o caráter do Senhor. E o apóstolo vai além, anelando que isso perdure até a volta do Senhor.

Eis aí o objetivo central desse texto paulino. Livres agora de especulações, debates e discussões inúteis, unamo-nos a ele nessa súplica, pois dificilmente encontraremos um alvo tão relevante e sublime na vida cristã.

Pr. Marcos Granconato

Non nobis, Domine

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