Terça, 19 de Março de 2024
   
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Eclesiastes 7.7-14 – O Sábio e os Riscos de Agir como um Tolo

 

Os seis primeiros versículos desse capítulo mostram que, se alguém se lembrar que vai morrer e refletir sobre o impacto que essa verdade traz consigo, é possível alcançar alguma sabedoria, tanto teórica como prática. Mas essa sabedoria é posta muitas vezes à prova em meio a circunstâncias que tentam o sábio a agir segundo seus impulsos e não de acordo com o conhecimento que adquire por meio da Palavra de Deus e do temor do Senhor. O Pregador demonstra, nesse trecho, que a sabedoria de Deus dispõe a vida humana de modo a torná-la bela, apesar dos seus absurdos (cf. 7.14),[1] sendo justamente nas adversidades que as qualidades do sábio são aquilatadas.

A inserção da frase “isso também é futilidade” no versículo anterior (v.6), tão comum na primeira metade do livro, demonstra que a comparação entre o sábio e o tolo vai assumir uma nova forma, com uma nova lição que a pessoa que quer ser sábia nesse mundo precisa aprender (v.7): “A opressão pode transtornar o sábio, assim como a propina pode desencaminhar o coração”. O tema da opressão já foi abordado pelo autor (4.1; 5.8), mas, aqui, fica difícil determinar se o texto coloca o sábio na figura do opressor ou do oprimido.[2] Se o primeiro caso for o correto, então, atuando com opressão sobre quem não consegue se defender, o sábio age como se fosse um tolo, “transtornado” pela cobiça e pela ganância do mundo. Quem se porta desse modo, segundo descrito na primeira metade do livro, é movido por valores de quem só acredita no que vê na vida “debaixo do Sol”, ignorando qualidades intrínsecas do caráter sábio como honestidade, verdade, justiça, humildade e amor.

Contudo, a comparação proposta na segunda parte do versículo coloca o indivíduo como alguém que é impactado e transformado por ações injustas que vêm de fora dele. Nesse caso, se uma pessoa oferece a outra “propina” para que julgue ou faça algo em seu benefício, o “coração” de quem recebe o dinheiro de corrupção pode se “desencaminhar” do rumo da justiça e do caminho dos valores santos e retos. Dessa maneira, a primeira parte do versículo pode vislumbrar o “sábio” na mesma situação passiva, na qual, testemunhando ou recebendo a opressão de outros, acaba por se “transtornar” com isso. A questão que o Pregador parece abordar, com isso, é a da resistência do sábio em meio a fatores estressantes da vida que podem fazê-lo agir como um tolo. Isso constituiria um alerta do escritor a fim de que o homem que quer ser sábio não se deixe levar pelos impulsos revoltosos diante da opressão da sociedade e acabe por tomar decisões tolas. É preciso que ele se controle e tenha paciência.

Não por coincidência, é justamente sobre paciência que fala o versículo seguinte (v.8): “É melhor o fim das coisas que o seu início, assim como é melhor ser paciente que ser arrogante”. Mais uma vez, uma frase desse capítulo começa de modo desconcertante, dizendo que o “fim” é melhor que o “início”. Por causa da falta de definição que essa pequena frase carrega, a primeira parte do versículo, que deveria servir para apoiar o que é dito na segunda parte, também depende da segunda para adquirir um significado que justifique seu uso pelo autor. A segunda metade do versículo é formada por um tipo de trocadilho no texto hebraico, no qual Salomão diz que é melhor ter um “espírito largo” que um “espírito alto”. Ele se vale das dimensões de largura e de altura para, com a largura, expressar um ânimo largo, longo e “paciente”. Por sua vez, vale-se da altura a fim de expressar o ânimo altivo, que se engrandece e que é “arrogante”. Sendo assim, tudo indica que o “fim” de que ele trata no começo do versículo é aquele alcançado apenas depois de o sábio ter paciência tanto com o tempo como com as condições para chegar a ele.

Por outro lado, o “arrogante” dá “início” a muitas coisas, gloriando-se de antemão por resultados que almeja obter, mas desiste no meio do caminho por lhe faltar paciência e a humildade necessárias para aguentar os obstáculos aos seus objetivos, demonstrando que sua arrogância não é sinal de valor pessoal, mas de insensatez. Além do mais, o arrogante, sem paciência para planejar, pedir conselhos e escolher o modo adequado, dá início às coisas de maneira errada. Assim, há aqui um alerta sobre o perigo de se tomar os caminhos fáceis que, no seu percurso, têm desvios e obstáculos que tornam a viagem muito cara para aquele que inicia errado suas jornadas,[3] como no caso da “opressão” e da “propina” (v.7).

A paciência é mais uma vez o requisito necessário ao sábio nos momentos em que é tentado a explodir (v.9): “Não seja apressado para se irritar, pois a ira se abriga no íntimo dos tolos”. A primeira parte do texto diz, literalmente, “não seja apressado em seu espírito para se irritar”. O uso da palavra “espírito” aqui é decorrente da construção do versículo anterior, demonstrando que o assunto continua a ser a respeito do ânimo pessoal. A tolice, nesse caso, é percebida em pessoas facilmente provocáveis e que são levadas à ira sem grande dificuldade. O texto não abre espaço para que o homem “apressado para se irritar” seja qualificado como sábio, já que diz que a “ira se abriga no íntimo dos tolos”. Não quer dizer que o sábio não possa se irar com o erro, com a maldade ou com a injustiça, mas significa que ele não é uma pessoa explosiva, sem controle das emoções e que perde a calma sem nem mesmo refletir por um momento sobre qual é a melhor atitude a ser tomada e quais são as consequências dos seus atos.

Como a paciência e o autocontrole são os assuntos que dominam os versículos 7 a 9, podemos conectá-los e lançar sobre eles um pouco mais de luz, percebendo que não são independentes uns dos outros, como pode parecer à primeira vista. Assim, a opressão deve ser suportada pelo sábio sem que ele se deixe transtornar em meio às injustiças, abandonando sua própria condição justa e equilibrada. Fazendo isso, ele continuará com seus intentos e deveres, mantendo a paciência contra todos os impulsos carnais a fim de terminar o que começou, mesmo quando a irritação lhe faz um chamado bem atrativo. Nesses casos, antes de qualquer atitude, ele pensa no que é melhor para o agora e para o futuro, tomando suas decisões com calma, extremamente diferente daqueles que abrigam a ira no seu íntimo. Mas a continuidade do texto não para por aqui. Os versículos 9 e 10 pintam um quadro de uma atitude de inconformismo e irritação com insucessos, obstáculos, problemas relacionais ou desventuras, algo que o sábio deve levar em conta.

O Pregador situa seu leitor em uma situação de adversidade, um tempo de lutas e decepções, e lhe aconselha (v.10): “Não pergunte: ‘Por que os dias passados foram melhores que estes?’, pois não é próprio da sabedoria questionar tal coisa”. Que há tempos melhores e mais fáceis que outros, isso é fato. Mas a questão é por que não seria sábio perguntar sobre algo tão comum na vida das pessoas? A resposta a isso parece ser que o objetivo da pergunta exposta aqui não é encontrar respostas, mas se queixar sobre o que está ocorrendo. Para o homem existencialista, que só crê no que vê debaixo do Sol, tal pergunta não faria muito sentido, mas encontraria um melhor contexto para ser inserida, já que a queixa teria como base apenas a situação presente. Mas para o homem sábio, que olha para as coisas acima do céu, essa queixa seria direcionada àquele que criou tudo que existe e que controla os rumos da história e a vida das pessoas. Irar-se apressadamente (v.9) contra os desígnios e propósitos de Deus seria uma ação de rebeldia contra seu controle soberano, contra seu caráter santo e contra sua vontade perfeita. Desse modo, o texto ensina a enfrentar em cada dia seus próprios percalços como o mesmo ânimo, em uma atitude de contentamento, não por impotência tola, mas por reverente temor diante da soberania do Senhor.

Tendo descrito várias situações e adversidades que trazem riscos ao sábio de agir como um homem tolo, o escritor fala agora de riscos dos quais a sabedoria pode livrá-lo (v.11): “A sabedoria é boa como uma herança e proveitosa para os que veem o Sol”. Esse é um texto de difícil tradução que divide os comentaristas, visto que pode ser traduzido na forma de “como uma herança” ou na forma de “com uma herança”. A questão é que a preposição hebraica utilizada pelo escritor tem tanto a função de uma comparação como de um acompanhamento.[4] O que define, então, a forma a ser escolhida pelo tradutor é o contexto em que a palavra se encontra. No contexto presente, o autor parece encarecer a sabedoria comparando-a a uma herança, confrontando os resultados proveitosos de ambas na vida de alguém (cf. v.12). Por isso, julgamos ser mais condizente com o pensamento e com a argumentação do autor a forma comparativa “como uma herança”. Portanto, o escritor está dizendo que a sabedoria é tão valiosa quanto uma herança gorda que alguém recebe, abrindo-lhe as portas de possibilidades antes inacessíveis.

A palavra “proveitosa”, por sua vez, tem uma conotação financeira de lucro excedente, bem-apropriada em uma comparação em que figuram os valores monetários de uma herança. Quanto àqueles a quem a sabedoria beneficia com seu proveito, ou seja, os que “veem o Sol”, trata-se das pessoas vivas. Mas o autor usa essa expressão para lembrar que todos nós vivemos debaixo do Sol, ainda que possamos ter valores diferentes, sermos sábios ou tolos, olhar para acima do céu ou não, temer ou não a Deus. Apesar das grande diferenças que há entre as pessoas, só são capazes de usufruir dos “proveitos” da sabedoria aqueles que agem com a sabedoria indicada ao longo do livro, sob o temor do Senhor.

Para exemplificar a comparação e torná-la mais acessível e pessoal ao leitor, o proveito, tanto da sabedoria como da riqueza, é exposto e comparado (v.12a): “Pois tanto a sabedoria como a riqueza trazem proteção”. A proteção que a riqueza é capaz de trazer ao seu dono é incontestável, pois ela pode pagar por empregados, instalações e instrumentos que lhe sirvam de amparo em uma situação perigosa. Por outro lado, o escritor mostra que não são apenas os ricos que têm possibilidade de se proteger, pois a sabedoria, que não pode ser comprada com dinheiro, é um instrumento poderosíssimo de proteção a qualquer um que a tenha, seja ele rico ou pobre.

Se, por um lado, a sabedoria e a riqueza se igualam, por outro, a sabedoria leva vantagem (v.12b): “Mas o proveito do conhecimento é que a sabedoria preserva a vida daquele que a possui”. Nesse trecho, as palavras “conhecimento” e “sabedoria” são equivalentes e seu uso se deve a uma questão de estilo literário, no qual citar a sabedoria duas vezes causaria mais confusão que compreensão e daria um tom nada sofisticado a frases que carregam tanto conhecimento de modo tão belo. O que, de fato, o Pregador quer dizer é que há situações em que o dinheiro de nada vale para a proteção, fazendo jus ao provérbio que nos alerta de que “o ensino do sábio é fonte de vida, para que se evitem os laços da morte” (Pv 13.14). A superioridade da sabedoria vem de ela ser um guia permanente nos momentos difíceis, podendo preservar a vida de alguém, enquanto o dinheiro não tem a garantia de permanência, sendo frequentemente perdido nos tempos difíceis.[5] Essa verdade é ilustrada adiante numa história em que um homem pobre e sábio salva sua cidade, mas é depois esquecido. Apesar da injustiça e falta de gratidão para com ele, o texto não avalia a situação do pobre sábio como ruim, mas enaltece suas qualidades acima do poder das armas (9.13-18).

Ao chegar ao final desse trecho, o argumento do Pregador gira em torno da razão pela qual ensinou o valor da paciência, do contentamento e da sabedoria. Ele introduz esse ponto, tão importante para a formação de uma visão correta da vida, com uma pergunta retórica (v.13): “Observe as obras de Deus, pois quem pode endireitar aquilo que ele curvou?”. O caráter retórico da pergunta vem do fato de não haver outra resposta a ela que não seja “ninguém”. A frase “endireitar o que ele curvou” pode também ser traduzida como “tornar reto aquilo que ele fez torto”. Quando usou essa mesma expressão em 1.15, Salomão percebeu não ter capacidade de alterar significativamente coisas ligadas à criação e à experiência humana, do mesmo modo que não é possível endireitar um galho torto. Mas, enquanto no começo do livro essa menção traz uma tônica de incapacidade humana, nesse ponto, ainda que use os mesmos termos, trata-se de uma afirmação do controle divino. O controle divino sobre os rumos da vida dos seus servos não os torna impotentes, mas obedientes e resignados diante desse controle. Esse é o ponto de ligação com os versículos anteriores, pois se percebe que a resignação é melhor que a indignação[6] quando se pensa nas situações de vida que Deus nos impõe por meio de seus propósitos perfeitos, ainda que misteriosos.

Para completar a ideia do versículo 13, o autor fornece uma importante chave de compreensão, não apenas desse trecho, mas da própria vida (v.14): “No dia de prosperidade se alegre, mas no dia de dificuldade pense nisto: Deus fez tanto o dia de dificuldade como o dia de prosperidade a fim de que o homem não descubra nada do que ocorrerá no futuro”. O começo da frase nos lembra de quando, ainda na primeira parte do livro, o autor recomenda que seus leitores tirem bom proveito dos frutos do seu trabalho, reconhecendo que o usufruto deles é um presente de Deus (2.24; 3.13; 5.18). Mas a ênfase do argumento recai no “dia de dificuldade”. Nesse caso, ele pensa nas dificuldades nas quais ele aconselhou o uso da sabedoria, mas nas quais também reconheceu o perigo de o sábio agir como um tolo, seja diante da opressão, da propina, da ira, da precipitação, da murmuração ou dos perigos. Nesses tempos de dificuldades, ele orienta seu leitor a pensar em uma verdade fundamental ligada ao controle soberano de Deus sobre tudo que criou: do Senhor vêm os bons e os maus dias.

O trecho traduzido como “Deus fez tanto o dia de prosperidade como o dia de dificuldade” quer dizer, no texto hebraico, “Deus fez tanto este como aquele”. Isso quer dizer que não se pode culpar o azar ou o diabo pelos momentos ruins que atravessamos. O próprio Senhor é quem controla tudo e que decide os rumos da nossa existência, incluindo seus altos e baixos. Eis a razão pela qual o escritor recomenda paciência e resignação diante dos males, pois se rebelar por causa deles é revoltar-se contra aquele que os deu, demonstrando falta de confiança nos dias maus e falta de gratidão pelos dias bons. Em vista disso, Salomão recomenda submissão à soberania de Deus, desfrutando os bons tempos (“se alegre”) e lembrando (“pense nisso”) em tempos ruins que a adversidade tem propósitos inescrutáveis além da compreensão humana finita.[7] Além disso, o fato de o homem ser incapaz de descobrir o que “ocorrerá no futuro” deve banir sua falsa sensação de controle e mantê-lo sob dependência do controlador de tudo, contentando-se com cada momento da sua vida, tanto os fáceis como os difíceis.

A grande dificuldade do homem e o risco à sua sabedoria vêm justamente de ele não compreender os planos de Deus.  As Escrituras explicam muitos dos propósitos do Senhor, mas nem todos, fazendo os seres humanos conviverem com a realidade de que a sabedoria pode ajudar o homem e protegê-lo em tempos de angústia, mas não é capaz de fazê-lo discernir o propósito tanto da prosperidade como da adversidade.[8] Contudo, apenas entender que todas as circunstâncias vêm das mãos de Deus impede seus servos de, queixosa e revoltosamente, ficarem perguntando “por quê?”. Ao contrário, lhes dá gratidão quando podem aproveitar a prosperidade e comedimento quando os males os alcançam. Nessas situações, aqueles que temem a Deus primam pelo procedimento sábio e equilibrado com a certeza de que, mesmo não compreendendo os planos e os propósitos divinos, estão lidando com a “boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2). Saber que essa é a vontade que guia nossa história e nossa experiência pessoal é algo que muda completamente a visão da vida, tirando-nos da desesperança e da falta de sentido da existência humana, debaixo do Sol, e fazendo-nos olhar, acima do céu, para aquele a quem se deve temer e de quem se deve aprender a viver nesse mundo até que, no futuro, encontremo-nos com ele.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Waltke, Bruce K.; Yu, Charles. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 1071.

[2] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 227.

[3] Wiersbe, W. W. Be Satisfied. “Be” Commentary Series. Wheaton: Victor Books, 1996, p. 87.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 7.11 – nota 38].

[5] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 321.

[6] LaSor, William S., Hubbard, David A.; Bush, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 548.

[7] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 993.

[8] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 569.

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