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Colossenses 2.16-23 - Regras Inúteis

  

As ações salvíficas que Cristo realizou em prol dos crentes têm desdobramentos vivenciais. Tendo sido vivificados, perdoados e libertos tanto da dívida que constava de ordenanças como do império dos anjos do mal, Paulo destaca que qualquer regra legalista imposta agora sobre os salvos não tem qualquer sentido, uma vez que sujeitá-los a tais normas seria o mesmo que colocá-los sob nova escravidão. Querendo, pois, apontar as implicações do ensino que acabou de expor, o Apóstolo, no v. 16, usa o termo “portanto”. Seu uso indica o desfecho do pensamento apresentado anteriormente, ou seja, o que decorre daquilo que acabou de dizer.

Com efeito, para Paulo, em decorrência do livramento que provaram, os cristãos não deveriam deixar que ninguém os julgasse pelo que comiam ou bebiam, nem tampouco em relação a festas, celebrações ou dias supostamente sagrados como o sábado. Essa admoestação do Apóstolo mostra que, conforme já destacado na análise de 2.8, o gnosticismo que se alastrava na região de Colossos trazia nítidos elementos do judaísmo legalista. Além disso, no v. 20, a expressão “princípios elementares deste mundo” indica que aquele sistema filosófico-religioso abrigava também idéias oriundas do paganismo helenista, as quais acolhiam noções de livramento por meio da purificação que, segundo criam, era decorrente do rigor ascético (Veja-se comentário a 2.8. Veja-se ainda Gl 4.3, 8-11).

O v.16 fornece exemplos das regras que o proto-gnosticismo, com seu fundo judaico e helenista, impunha aos seus adeptos. O texto fala inicialmente de ataques contra o uso de alimentos, apontando para as restrições que os falsos mestres faziam quanto a comida e bebida. A Lei Mosaica havia imposto limites à dieta dos judeus, proibindo vários tipos de alimento (Lv 11) e o gnosticismo embrionário, ao que se vê, recepcionou esse aspecto da Lei.[1] Quanto a bebidas, o VT não fazia nenhuma restrição, mas é possível que os proponentes do gnosticismo nascente, com seu rigor ascético, proibissem a ingestão de qualquer líquido que produzisse prazer especial para os sentidos do corpo.[2]

Paulo ensina que o crente não deve permitir que o julguem pelo consumo dessas coisas. Ao usar o verbo “julgar”, o Apóstolo tem em vista aqui a conclusão de um julgamento cuja sentença é desfavorável. Assim, ele insiste com os colossenses para que eles não acolham qualquer palavra que os condene por consumirem o que quer que seja. De fato, estão longe da fé cristã as proibições referentes a comida e bebida (Mc 7.18-19; Rm 14.1-3,17; 1Tm 4.1-5).[3]

Os cristãos também não devem ouvir ou acolher qualquer censura referente a guarda de dias especiais. Paulo alude a essa prática através de três expressões: festividade religiosa (Lit. “dia de festa”), celebração das luas novas (ou somente “lua nova”) e dias de sábado. Todas parecem indicar a estreita relação entre a heresia colossense e alguns elementos do judaísmo. De fato, o calendário judaico fixava datas descritas exatamente nos termos usados por Paulo no versículo em análise (Nm 10.10; 2Cr 8.13; 31.3; Sl 81.3-4; Is 1.13-14)[4] e, ao censurar a observância desses dias, o Apóstolo não somente se insurgiu contra a nova heresia que se desenvolvia no Vale do Lico, mas também revelou a independência do cristianismo em relação aos velhos moldes religiosos judaicos (Mt 9.14-17).

Paulo explica a razão pela qual os crentes não devem se preocupar com censuras quando comerem e beberem ou quando não guardarem dias especiais. Ele afirma que a dieta restrita da Lei Mosaica e as datas sagradas do calendário judaico são apenas “sombras do que haveria de vir” (17). Isso significa que todos esses aspectos exteriores da Antiga Aliança devem ser considerados símbolos, meras imagens de uma realidade muito mais importante, perene, clara e sólida. De fato, como a sombra de um corpo projetada na parede, o cerimonialismo judaico apresentava de forma pálida alguns contornos do que um dia seria plenamente revelado. Seu valor e propósito giravam em torno disso e, assim, sua razão de ser perdeu o sentido tão logo o que prefiguravam se manifestou.

O versículo 17 diz qual é a realidade para a qual todas essas coisas apontavam. Se as restrições alimentares e os dias sagrados eram a sombra, o corpo, diz Paulo, é de Cristo. Nele se encontra o cumprimento das verdades para as quais, de forma simbólica, as determinações da Lei apontavam e, evidentemente, estando o cristão agora diante da realidade palpável, não há mais razão nenhuma para ostentar suas fracas projeções. Assim como as placas em uma rodovia perdem a utilidade para o automóvel que chega ao ponto que elas indicavam, da mesma forma, as prescrições exteriores da Lei a que Paulo alude no v. 16, perderam sua utilidade tão logo Cristo, aquele para quem tais normas apontavam, se revelou ao homem.

Com efeito, o advento do Senhor trouxe à luz inúmeras realidades prefiguradas na Lei. No tocante às restrições alimentares, não fica claro no NT para quais aspectos da doutrina cristã isso apontava. Talvez uma relação entre essa forma de abstinência e a verdade trazida à luz por Cristo possa ser encontrada considerando-se a Festa dos Pães Asmos. Nessa celebração era proibida a ingestão de qualquer comida com fermento (Ex 23.15). Ora, à luz de 1Coríntios é notável que Paulo vê nisso um símbolo da necessidade de pureza na igreja. Pensando nessa festa, o Apóstolo ensina que a igreja de Corinto devia purgar sua comunhão de indivíduos que vivessem no pecado, lançando fora “o velho fermento” a fim de ser uma “nova massa” (1Co 5.6-13).

A Festa dos Pães Asmos é exemplo não só do simbolismo de certas restrições alimentares, mas também do significado dos dias festivos e especiais que a heresia colossense inutilmente tentava preservar. Ora, como é sabido, essa festa durava sete dias e era celebrada pelos judeus imediatamente após a Páscoa, sendo, portanto, a longa festa do povo agora redimido, liberto do jugo opressor do Egito. Tudo isso, como ensina o texto em análise, apontava para realidades que vieram à luz com o advento de Cristo e a realização de sua obra.

A Páscoa, obviamente, com o sacrifício do cordeiro, prefigurava Cristo e seu sofrimento na cruz. Sua morte foi a verdadeira Páscoa, simbolizada pela antiga festa judaica, e promotora da real libertação, a redenção do jugo do pecado. Os que se beneficiaram desse sacrifício e, pela fé, se alimentaram do Cordeiro de Deus (Jo 6.48-51), participaram dessa Páscoa verdadeira e singular. Por isso, agora celebram a festa que sucede a Páscoa, ou seja, celebram uma contínua Festa dos Pães Asmos, na qual não deve haver lugar para o velho fermento do pecado.

Logo, se o sacrifício de Cristo e a salvação que disso decorre eram simbolizados pela Páscoa judaica, a nova vida dada por ele é simbolizada pela Festa dos Pães Asmos, a celebração que se prolonga por dias a fio, marcada pelo abandono da impureza. Foi isso o que Paulo ensinou quando escreveu: “Pois Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi sacrificado. Por isso, celebremos a festa [dos Pães Asmos], não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da perversidade, mas com os pães sem fermento, com os pães da sinceridade e da verdade” (1Co 5.7b-8).

Ainda no tocante a guarda de dias, Paulo ensina que também o sábado guardado pelos judeus deve ser visto pelos crentes como uma sombra que, com a chegada do corpo que é Cristo, se desfez totalmente. Ora, é evidente que a guarda do sétimo dia era um símbolo do descanso que Deus inaugurou ao fim da criação (Gn 2.2). Esse descanso do trabalho criador nunca mais teve fim, pois o Senhor o iniciou quando concluiu totalmente a obra de construção do universo e nada mais havia para fazer nesse aspecto.[5] Aliás, é curioso notar que todos os dias da criação são descritos em Gênesis como tendo tarde e manhã (Gn 1.5,8,13,19,23,31) exceto o sábado (Gn 2.2-3). Isso foi destacado por escritores antigos como um indício de que o descanso de Deus é eterno, que o dia do seu repouso não tem noite, que nele a luz brilha para sempre.[6]ˉ[7]

Era para esse descanso que a Lei Mosaica apontava ao exigir a guarda do sábado. Quando Cristo se manifestou, porém, o repouso de Deus prefigurado na observância do sétimo dia tornou-se de pronto acessível ao homem. De fato, Cristo disse certa vez: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.28-29).

As palavras de Jesus sugerem que as delícias do descanso celeste inaugurado, abençoado e santificado por Deus depois da criação do mundo podem ser desfrutadas em boa medida desde já e que esses benefícios se tornaram disponíveis graças à manifestação do Filho de Deus, por meio de quem, os que vivem na terra podem provar, mesmo agora e pela fé, o fim do pesado jugo legalista (Jo 1.17; At 15.10; Gl 5.1) e as alegrias futuras do sétimo dia celestial (Jo 4.13-14; 1Tm 6.12). Por isso, é certo dizer que todos os que crêem em Cristo, vivem agora num sábado constante, marcado pelo repouso em Deus e pelo desfrute prévio e substancial da bem-aventurança que os aguarda na glória.

O preceito mosaico acerca do sábado, porém, não apontava somente para o descanso prévio que o homem experimenta quando conhece o Salvador. A guarda do sétimo dia exigida na Lei também simbolizava a entrada do crente no próprio descanso de Deus, ou seja, o seu ingresso no repouso pleno e real que, desde o término da criação do universo, nunca terminou.

Esse ensino é claramente exposto em Hebreus 4.1-11. Nesse texto é ensinado que a incredulidade (também descrita como “desobediência”, cf. Hb 3.18-19) é o fator impeditivo de entrada no prometido descanso de Deus (vv.1-3, 6). A passagem de Hebreus também diz que esse descanso é associado ao dia em que o Senhor repousou após o término de sua criação (vv.3-5) e afirma em seguida que o cumprimento presente das promessas de Deus não satisfaz de forma plena a sua grandiosa promessa de descanso completo feita aos fiéis (vv. 7-9). Segundo o texto, há, portanto, um repouso futuro e perfeito ainda aguardando o povo redimido (vv.9-10 – observe-se que no v. 9 a palavra traduzida como “descanso” ou “repouso” quer dizer literalmente “descanso sabático”) e somente a fé que persevera (ou não desobedece) ingressará nesse sábado sublime e perpétuo (v.11).

O sábado, assim, era uma sombra dessas coisas. Tratava-se, de fato, de uma ilustração ou um símbolo que apontava para Cristo, mais especificamente para o repouso de que hoje se beneficiam os que crêem nele, já que tais pessoas foram aliviadas no fardo legalista e podem experimentar agora uma porção do descanso celeste. O sábado também simbolizava o repouso futuro e perfeito a que se pode ter acesso pela fé em Cristo, o repouso celeste no qual todo crente entrará em breve. Eis a razão pela qual Paulo não vê sentido no cristão observar a guarda ritualista e mecânica do sétimo dia. Para ele, quem já tem a realidade do símbolo não precisa mais se preocupar com o símbolo da realidade.    

Paulo prossegue em sua exortação estimulando os crentes a não concederem espaço em sua vida para pessoas que, separadas de Cristo, se apresentavam como mestres detentores de grande sensibilidade espiritual. Obviamente, ele tem como alvo aqui os doutores do gnosticismo em formação que ameaçava contaminar as igrejas da região de Colossos. No v. 18, Paulo descreve o modo de proceder desses falsos líderes religiosos, traçando um perfil surpreendentemente atual de todos os proponentes de doutrinas mentirosas.

Se for seguida a ordem presente no texto grego, o Apóstolo primeiramente diz que os pseudo-profetas eram pessoas que consideravam os crentes indignos da salvação. A expressão “os impeça de alcançar o prêmio”, constante na NVI, é tradução de uma palavra apenas, verbo cujo significado pode ser tanto “privar” (o adotado pela NVI) como “decidir contra” ou “condenar” (ARA). Esses dois sentidos podem ser facilmente conjugados, pois o verbo descreve, inclusive, a atuação do árbitro de uma competição que, ao decidir contra um dos participantes, declara-o indigno de receber o prêmio. Assim, é provável que os mestres sectários de Colossos estivessem declarando que os cristãos, com a fé simples que adotavam, jamais receberiam a coroa da vitória. Como juízes numa disputa esportiva, eles como que diziam dos crentes: “Estes são os perdedores. Como árbitros decidimos que eles não fazem jus a nenhum troféu”.

Paulo diz ainda que os doutores heréticos faziam isso se deleitando em algum tipo censurável de “humildade”. O adjetivo “falsa” não consta do texto grego (nem tampouco no v. 23, onde o substantivo aparece novamente), mas é evidente que tem-se em vista aqui uma “modéstia ostensiva”. Sem dúvida, adotando um modo de vida repleto de privações (v. 21-23), os falsos mestres pretendiam transmitir aos homens a aparência de serem pessoas desprendidas, livres de qualquer apego aos bens e prazeres deste mundo material. Naturalmente, a própria intenção de fazer essa “humildade” ser notada era prova de sua falsidade.

É possível também que o uso da palavra “humildade” por Paulo, sem qualquer qualificação ruim, signifique ainda que havia nos falsos mestres uma disposição real de se submeter, sem reservas, aos deveres ascéticos e cerimoniais da seita. Esse tipo de humildade, contudo, por mais sincera que fosse, não recebia o aplauso do Apóstolo, posto que, sendo decorrente de crenças erradas, expressava-se em práticas vazias de qualquer valor.

Curiosamente, portanto, havia nos doutores gnósticos, um misto de soberba e humildade, sendo esse paradoxo claramente percebido no texto grego do versículo 18. Se por um lado eles eram orgulhosos por se considerarem membros de uma elite espiritual e almejarem que os homens reconhecessem isso; de outro, eram humildes, havendo neles uma disposição sincera em se curvar diante das determinações cultuais e ritualistas de sua filosofia religiosa, bem como diante de normas rigorosas que negavam ao corpo o desfrute de qualquer prazer. Em ambos os casos, tanto em seu orgulho como em sua humildade, os hereges de Colossos eram alvo da justa reprovação apostólica.  

Outra prática na qual os primeiros gnósticos se envolviam era a “adoração de anjos”. O comentário a 2.8 já apontou o lugar que o culto a entidades angélicas ocupava nas religiões de fundo helenista. Considerando que seres espirituais controlavam os astros e estes, por sua vez, influenciavam o destino dos homens, os falsos mestres promoviam cerimônias de adoração a eles, possivelmente crendo também que receberiam, dessa forma, ajuda para se livrarem com celeridade maior da matéria à qual estavam presos por um ciclo de sucessivas reencarnações.

Como os cristãos não praticavam a abstinência “humilde” dos hereges, nem buscavam o favor dos seres angelicais, os mestres da mentira diziam que eles não eram dignos de receber o prêmio da salvação. Não se sabe que destino os gnósticos do século I apontavam para os crentes, mas sabe-se que no século II, essa forma perniciosa de religião dizia que os cristãos que desprezassem a gnose perfeita seriam aniquilados. Já os crentes que nutrissem uma fé simples e a boa conduta poderiam ser postos num lugar intermediário, abaixo do plano perfeito que chamavam de Pleroma, este reservado somente para os que abraçavam os ensinos gnósticos. Quanto aos corpos de todos, por ser matéria má, seriam devotados à destruição completa, sem qualquer esperança de ressurreição.[8]

Para conferir credibilidade aos seus ensinos, os falsos doutores também alegavam ter visões. Paulo usa aqui uma expressão que não aparece em nenhum outro lugar no NT e cujo sentido é incerto (Lit. “Entrando em visões”).[9] O significado mais provável é que os hereges narravam detalhes do que diziam ter visto em experiências de êxtase, talvez nas suas cerimônias de iniciação, ou investigavam de forma acurada as minúcias dessas mesmas visões, fazendo especulações acerca da mensagem que supostamente estava por trás delas e buscando, assim, conhecimento (gnose) mais profundo dos mistérios espirituais.

Paulo destaca que o problema principal dessas pessoas era a mente carnal, ou seja, a disposição interior de atender aos impulsos de sua natureza pecaminosa (Rm 8.5-8). Nos falsos mestres a mente carnal se comprazia na crença de que, sendo dotados de rara percepção espiritual, eram superiores aos outros homens. Segundo Paulo, porém, não havia motivo algum para que nutrissem esse sentimento de grandeza.

A raiz de todos os males ensinados e praticados pelos falsos mestres, segundo o entender do Apóstolo, é que eles não estavam unidos a Cristo (19). Esse era o motivo principal pelo qual julgavam os crentes indignos de receber o prêmio final. Essa também era a causa por que se gloriavam em seu rigor ascético, em seus rituais e experiências místicas, além de nutrirem sempre uma mente carnal inflada com os ares da soberba.

A expressão que Paulo usa no v.19 para se referir a essa deficiência primordial pode ser traduzida como “não se apegando à cabeça”. O verbo constante nessa expressão sugere a situação de quem teve algo nas mãos, mas não foi capaz de reter, guardar ou segurar. A alusão a Cristo como a “cabeça”, por sua vez, é indicativo óbvio de sua autoridade suprema (1Co 11.3; Ef 1.22; 4.15; 5.23; Cl 1.18; 2.10). O que Paulo está dizendo, portanto, é que os falsos mestres não foram capazes de reter a devida sujeição a Cristo, rejeitando por completo a sua autoridade e recusando-se a se manter debaixo dela.

Vê-se assim que, possivelmente, os hereges de Colossos, em algum período anterior, tiveram um bom envolvimento com o cristianismo autêntico, aparentando obediência ao Senhor. Depois, porém, descambaram para as crendices da falsa gnose. Se foi isso mesmo o que aconteceu, essa não foi a primeira vez que Paulo testemunhou o surgimento de doutores enganosos no meio do próprio rebanho de Cristo. Tampouco seria a última.

De fato, o Apóstolo havia visto essa tragédia em Corinto, por volta de 55 AD (1Co 15.12) e veria o mesmo problema ao tempo em que escreveu a Timóteo a sua última carta, em cerca de 66 AD (2Tm 2.16-18)[10]. Na mesma época, Pedro também apontou o perigo dos mestres apóstatas (2Pe 2.1ss). Além deles, João, em sua primeira epístola, escrita aproximadamente no ano 90 AD, fez referência à mesma realidade (1Jo 2.18-19). O que se depreende disso é que, muitas vezes, conforme a história da igreja cristã também atesta, os doutores do erro nascem dentro da própria comunidade eclesiástica, revelando-se precisamente no momento em que se mostram inconformados e até irritados com a verdade que ali aprendem. 

A alusão a Cristo como a cabeça desemboca naturalmente na figura da igreja como o seu corpo, uma imagem comum nos escritos de Paulo (Rm 12.4-5; 1Co 10.17; 12.12-27; Ef 1.22-23; 2.16; 3.6; 4.4, 12, 16, 25; 5.23, 29-30). Em Colossenses, a comunidade eclesiástica aparece como corpo de Cristo em 1.18, 24 e 3.15, além do texto em análise.

As idéias acerca da igreja que afloram em 2.19 são três: dependência, unidade e crescimento. A dependência é obviamente da cabeça, Cristo. Desligada dele nenhuma comunidade pode experimentar o crescimento a que Apóstolo se refere aqui. Conforme visto, o indivíduo ou grupo desconectado de Cristo é aquele que recusa sua autoridade e doutrina, dispondo-se a seguir fábulas (2Tm 4.3-4). Esse era o caso dos mestres da falsa gnose.

Quanto à unidade, essa decorre também da cabeça, mas pela instrumentalidade de seus “ligamentos e juntas”. Paulo explora ainda mais aqui a figura do corpo, deixando pouco claro a que correspondem as imagens dos ligamentos e juntas. Qualquer sugestão corre o risco de se afastar do propósito principal da figura que é acentuar a unidade provedora da manutenção do corpo. Seja como for, é ponto pacífico que em Colossenses, Paulo aponta a habitação de Cristo em seu povo, a boa disposição para com o outro, o amor, a paz (veja-se especialmente Ef 4.3) e a preponderância da palavra de Cristo entre os santos como os fatores que mantêm os crentes vinculados entre si (3.11-16). Eis aí, talvez, os itens representados pela imagem dos “ligamentos e juntas” que sustentam e unificam a comunidade dos salvos. Privada deles a igreja desmonta, se esfacela e cai. Tamanha destruição fatalmente sobreviria aos colossenses caso eles seguissem as falsas doutrinas que lhes estavam sendo propostas.

O crescimento mencionado no v. 19 resulta tanto da dependência da cabeça como da unidade promovida pelos ligamentos e juntas. Qual é a natureza do crescimento destacado aqui? Não se trata de crescimento numérico. Em Efésios 4.11-16, texto em que Paulo trata basicamente do mesmo assunto ora discutido, percebe-se claramente que o crescimento experimentado pelo corpo ligado a Cristo e unido por todas as juntas é o crescimento “na unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus” (Ef 4.13), ou seja, é o crescimento conjunto numa só maneira de crer e num só modo de conceber a pessoa de Jesus Cristo, rejeitando as alternativas heréticas dos mestres do engano.

Evidentemente, esse crescimento promove firmeza doutrinária, impedindo que os crentes sejam levados pelo ensino errado (Ef 4.14). A verdade, o amor e o serviço dominam o ambiente em que tal amadurecimento se processa (Ef 4.15-16). Deve ser destacado que, à luz de Efésios 4.13, o alvo final desse progresso é a maturidade que pode ser definida como o atingir “a medida da plenitude de Cristo”, expressão que descreve o crente “preenchido” por tudo aquilo que Cristo tem e pode transmitir. Paulo destaca em 2.19 que esse crescimento vem de Deus. De fato, outras formas de progresso (numérico, econômico, intelectual, etc.) podem ser provadas por qualquer grupo, não sendo necessariamente sinais do favor divino. O crescimento de que se trata aqui, porém, é bênção disponível somente à igreja verdadeiramente obediente e fiel.

Seguindo na linha principal de sua argumentação, Paulo explica que não fazia sentido os crentes de Colossos se submeterem aos “princípios elementares deste mundo” uma vez que, com Cristo, haviam morrido para o eles (20). Já foi exposto acima (2.8) o significado da expressão “princípios elementares deste mundo”. Basta recordar em linhas gerais que se referia a entidades espirituais que supostamente controlavam os astros, determinando assim o destino das pessoas. Segundo as concepções helenistas adotadas pelo gnosticismo incipiente, essas entidades podiam ser induzidas a atuar em prol do indivíduo, caso este se submetesse a certas exigências que incluíam o rigor ascético.

Paulo destaca que os cristãos, no tocante a essas coisas, morreram com Cristo. Em seus escritos o Apóstolo afirma com certa frequência que o novo comportamento do crente, o propósito de sua vida, bem como seu conjunto distinto de convicções foram acolhidos porque o homem salvo se tornou participante da morte de Cristo (Veja-se o comentário a 2.12). Tendo morrido com o Senhor, o crente ressuscitou para uma vida em que os velhos padrões de conduta e pensamento não são mais cabíveis (Rm 6.1-4, 11-13; 7.4; Gl 2.20; 6.14). É por isso que o v. 20 é carregado de certa dose de indignação. O mundo é marcado por todas as formas de perversão, inclusive a religiosa. Nesse campo é notório que nele reinam inúmeras concepções mitológicas e outras grosseiras superstições as quais impõem aos homens comportamentos tolos, inúteis e vãos (1Tm 4.1-7; 2Tm 4.4; 2Pe 1.16; Hb 13.9). Ora, os colossenses, mesmo tendo morrido para isso tudo, estavam agora, de forma surpreendente, se deixando levar de novo no rumo traçado pelos pastores da mentira.

Na prática, os destinatários da carta estavam se submetendo a regras. Essa conduta é descrita por Paulo através de uma só palavra, o verbo, cujo sentido básico na voz passiva é sujeitar-se a determinações, decretos ou regulamentos que foram ditados por alguém. Evidentemente, a censura de Paulo aqui diz respeito apenas à esfera religiosa, uma vez que seus leitores, assim como muitos crentes modernos, tendiam a crer que o cristianismo vivencial estava circunscrito à observância mecânica e artificial de normas e tabus. Segundo essa concepção, a espiritualidade cristã não passaria da adoção de um conjunto de escrúpulos estéreis que tornam os homens extremamente severos no julgamento de coisas sem importância.

A natureza das determinações que estavam sendo ensinadas aos colossenses pode ser detectada a partir do v. 21: “Não manuseie!”, “Não prove!”, “Não toque!”.  É evidente que essas proibições se relacionavam ao consumo de comida e bebida (Cf. 2.16). Porém, é também possível atribuir à primeira delas uma conotação sexual, especialmente quando se leva em conta que os proponentes da falsa gnose proibiam também o casamento (1Tm 4.3).[11]

Paulo faz uma análise crítica de tais regras nos vv. 22-23. Segundo ele “todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso” (22), ou seja, sendo proibições de ordem primordialmente alimentar, estavam relacionadas a elementos perecíveis que, com o simples uso, desaparecem. Ora, o próprio Senhor censurou a espiritualidade baseada em normas dessa natureza, ensinando que a piedade cristã não pode ser construída, medida ou demonstrada a partir de coisas que se desfazem tão facilmente (Mt 15.10-20). Ademais, diz Paulo, aquelas regras eram de origem meramente humana. Esse era o motivo pelo qual se estribavam em objetos tão vãos e passageiros. Com efeito, a mente do homem, sob o jugo do pecado, não poderia produzir uma piedade de categoria melhor (Tt 1.13-14).

O ensino do Apóstolo nesse ponto, evoca as palavras de Isaías 29.13, citadas, inclusive, por Jesus em uma de suas censuras aos fariseus e mestres da Lei (Mt 15.1-9). Sob a luz das palavras do Mestre, é possível vislumbrar a triste verdade de que aqueles que inventam, propõem e praticam formas fúteis de espiritualidade, repletas de preceitos e tabus, são pessoas distantes de Deus, apegadas a expressões meramente mecânicas e externas de religiosidade. Acrescente-se a isso o fato de que tais sistemas legalistas são extremamente eficazes na produção de hipócritas obstinados (Mt 15.7), isto é, de pessoas que somente fingem zelar pelo sagrado, quando, na verdade, não se dispõem a cumprir nem mesmo as regras que elas próprias defendem com tanto vigor (Mt 23.4; Gl 6.13).

A avaliação crítica de Paulo prossegue. Ele afirma que as regras do tipo proposto pelos mestres do gnosticismo nascente tinham aparência de sabedoria (23). Os contornos dessa aparência abrangiam o caráter religioso que expunham. Paulo descreve isso usando uma palavra que pode significar “culto de si mesmo” (ARA) ou, numa tradução que melhor expressa a idéia presente aqui, “adoração voluntária”. O termo, na verdade, indica o tipo de culto que a pessoa fabrica arbitrária e livremente. Trata-se, pois, da prática de quem inventa religiões ou formas diversas de adoração. Assim, Paulo está afirmando que a nova religião proposta pelos falsos mestres tinha sido engendrada por eles mesmos.[12] Essa conduta é absolutamente reprovável, já que as prescrições cultuais não podem ser fixadas a partir da livre vontade do homem, sendo aceitáveis somente aquelas que o próprio Deus estabeleceu. O céu e não a terra é o único berço da religião verdadeira.

A falsa religião também tinha aparência de sabedoria porque nela as pessoas viam uma nítida forma de humildade, expressa em sujeição incondicional aos preceitos criados. Ademais, havia ainda a severidade com o corpo que refletia um modo admirável de auto-negação e domínio próprio.  Tudo isso dava ao ensino dos falsos mestres um toque de seriedade, causando forte impressão nas pessoas comuns e nos crentes simplórios.

Paulo, porém, conclui sua crítica severa dizendo que todos os rigores da devoção gnóstica não tinham valor algum para refrear os impulsos da carne. Isso significa que as inclinações pecaminosas que subjugam a natureza humana não podiam ser neutralizadas pelas exigências da heresia colossense. Com efeito, o ritualismo, o legalismo, a superstição, enfim, a religião inventada pelo homem é muito fraca para inibir as tendências malignas que há no próprio ser humano. Somente o viver sob o controle do Espírito pode realizar esse milagre (2.11; Rm 8.12-14; Gl 5.16). Mitos, crenças e filosofias falsas, ao contrário, servirão somente para estimular ainda mais os impulsos do pecado que habita no homem, incitando seu orgulho, ao fazê-lo acreditar que pertence a um grupo seleto de pessoas detentoras de rara percepção mística ou conhecedoras de profundos mistérios espirituais.

Pr. Marcos Granconato    



[1] A cultura helenista também estimulava a abstinência de alimentos, porém baseada na crença da transmigração da alma.  A partir dessa noção, o ato de comer carne podia ser considerado uma forma de canibalismo.

[2] A incerteza decorre da escassez de informações detalhadas acerca das práticas gnósticas ao tempo da formação desse modelo filosófico-religioso. Dados posteriores, porém, revelam que algumas seitas ligadas ao gnosticismo proibiam a ingestão de vinho. A heresia encratita (o termo grego significa abstêmio), por exemplo, uma seita que tomou força no século II, exigia de seus adeptos a total abstenção tanto da carne como do vinho. Sabe-se que na sua refeição eucarística, a água era usada no lugar do vinho, num arremedo da Ceia do Senhor. Veja-se SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. II: Ante-Nicene Christianity (A.D. 100-325). Grand Rapids: Eerdmans, 1987. p. 494-495.

[3] A falta de moderação, porém, é descrita como pecado (1Co 11.21; Gl 5.21; Ef 5.18; 1Tm 3.2-3,8; Tt 2.3).

[4] As festas judaicas eram nove: Páscoa, Pães Asmos, Tabernáculos, Pentecostes, Lua Nova, Ano Novo (ou Trombetas), Dia da Expiação, Purim (que significa “sortes”) e Luzes (ou Festa da Dedicação). A festa da lua nova, destacada por Paulo no v.16, era celebrada pelos judeus no início de cada mês. Sua comemoração incluía a oferta de sacrifícios e o som de trombetas (Nm 10.10; 28.11-15).

[5] Deve-se destacar que Deus descansou definitivamente do seu trabalho criador. No tocante a outras realizações, o Senhor permanece em constante atividade (Sl 121.4; Jo 5.17).

[6] Nesse sentido, veja-se AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. XIII:50. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 416-417.

[7] É claro que, se os dias mencionados em Genesis 1 forem considerados dias literais, conforme impõe a boa hermenêutica, então o sétimo dia teve vinte e quatro horas assim como os demais. É evidente, contudo, que o descanso criador de Deus iniciado naquele primeiro sábado nunca teve fim. É exclusivamente sob esse aspecto que se pode falar de um sábado eterno como, aliás, conforme será visto, o próprio autor de Hebreus destaca.

[8] IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias I:6-7. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 1995. vol. 4. p. 47-52.

[9] Há uma variante textual, acolhida por um vasto número de manuscritos, que inclui nessa expressão o negativo. Nesse caso, uma tradução possível seria: “Baseando-se em coisas que não viu”. Se essa leitura for adotada (como foi pela ARC e pela KJV), Paulo estaria dizendo que os falsos mestres ensinavam coisas que Deus jamais lhes havia revelado através dos meios pelos quais ele costumava falar aos seus profetas. Sendo assim, tudo o que os hereges afirmavam era mero resultado das projeções de sua mente carnal. 

[10] A heresia mencionada por Paulo em 1Coríntios 15.12 rejeitava de forma cabal a hipótese da alma humana, depois de separada do corpo na morte, voltar a ser novamente “aprisionada” nele. Já a heresia mencionada em 2Timóteo 2.18 propunha provavelmente uma forma espiritual de ressurreição. Ambas se alinhavam ao gnosticismo com sua aversão à matéria.

[11] O verbo constante da primeira proibição tem o sentido, na voz média, de tocar ou pegar, sendo praticamente sinônimo do verbo constante da terceira proibição. Em 1Corintios 7.1, é usado para se referir a relações sexuais (Veja-se MARTIN, Ralph P. Colossenses e Filemom: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristã e Vida Nova, 1984. p. 107.).

[12] Veja-se o comentário sobre a expressão “baseando-se em visões” (2.18), especialmente a nota 9.

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