Quinta, 25 de Abril de 2024
   
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Gálatas 5.7-12 - Uma Corrida Interrompida

 

Nos primeiros dias de sua jornada como cristãos, os galateus tinham demonstrado boa disposição e realizado notáveis avanços. Paulo os compara no v. 7 a atletas que, durante uma corrida, apresentam um bom desempenho.[1] Algo, porém, aconteceu. Adversários os alcançaram e impediram que avançassem.[2] Fica claro no texto o que Paulo tem em mente com essa comparação: os crentes da Galácia , no início, haviam seguido a verdade do evangelho com força e vontade. Eles permaneceram firmes nessa fé até que os falsos mestres, com sua doutrina legalista, fizeram-nos parar e dar ouvidos a uma mensagem que apresentava a justificação mediante a guarda da Lei Mosaica.

Do v. 7 se depreende que correr bem a carreira cristã não é só enfrentar as perseguições que geralmente advêm aos santos, mas também sustentar a fé na verdade, sem deixar-se levar pelos convites dos pregadores mentirosos que, especialmente nos dias atuais, se alastram como uma epidemia. De acordo com a figura de Paulo, todo crente que abandona a Sã Doutrina e dá ouvidos a tais pregadores é como um atleta que parou de correr. Estendendo essa figura, pode-se perguntar: Que utilidade têm tais atletas? Que prêmio receberão?

A causa da interrupção da corrida na pista da verdade por parte das igrejas da Galácia era uma “persuasão” (8). O termo usado pelo Apóstolo (πεισμονὴ) sugere o uso de falácias sedutoras empregadas com o objetivo de convencer os galateus a abandonar o caminho que estavam seguindo. Que os judaizantes faziam uso de atrativos para fascinar e induzir os crentes à desobediência da verdade fica claro em 3.1 e 4.17. Paulo afirma que a origem dessa persuasão não era o Senhor, querendo dizer com isso que o trabalho e a mensagem dos falsos mestres infiltrados nas igrejas não estavam em harmonia com a vontade e os planos de Deus para o seu povo.

No v. 8, Paulo se refere a Deus como “aquele que os chama” (NVI). Essa designação é cheia de significado. De fato, para Paulo o crente é alguém que foi chamado à fé em Cristo por meio da pregação do evangelho (Gl 1.6; 2Ts 2.13-14) e respondeu positivamente a essa santa vocação. Note-se, porém, que o particípio grego usado no texto está no tempo presente (καλοῦντος), apontando para uma ação atual de Deus. É provável, portanto, que Paulo tenha em mente aqui um convite de Deus dirigido continuamente aos que já atenderam ao chamado para a fé.[3] À luz de outras passagens, esse chamado contínuo consiste num apelo para que os crentes sejam santos (Rm 1.7) e vivam em paz com Deus (2Co 5.20). Assim, ao falar de Deus como “aquele que os chama”, o Apóstolo talvez pretenda despertar a consciência dos seus leitores para o fato de que o Senhor, vendo seus filhos se distanciar mais e mais de si em virtude da persuasão dos falsos mestres (1.6), continuamente os convoca para que retornem a ele, rejeitando definitivamente o falso evangelho. Se de um lado os mestres da mentira convidavam os galateus para que seguissem suas invenções, de outro o Senhor os chamava docemente para que retornassem à sobriedade e à fé na verdade.

Por impedirem os galateus de obedecer a verdade, atendendo assim ao chamado de Deus, os falsos mestres se constituíam numa influência maligna que, aos poucos e num tempo breve, poderia corromper completamente as igrejas da Galácia. Paulo alerta os seus leitores para isso citando o conhecido brocardo: “Um pouco de fermento leveda toda a massa” (9). O Apóstolo usaria o mesmo adágio mais tarde, ao escrever aos coríntios (c. 55 d.C.), para ensinar a necessidade de expulsar um homem imoral da igreja (1Co 5.6-8). Ali, assim como no texto em análise, o “fermento” é símbolo da “maldade e da perversidade” (1Co 5.8).  A diferença é que, em Corinto, a maldade e a  perversidade manifestaram-se, entre outras coisas, através de um chocante desregramento sexual, enquanto na Galácia revelaram-se por meio do rápido e aberto desvio doutrinário.[4]  Da consideração de ambos os casos pode-se concluir que tanto a conduta errada quanto o ensino errado, quando admitidos na igreja, são capazes de, lentamente e de várias maneiras, afetar todos os seus membros.

Para que continue, portanto, a existir como igreja verdadeira, a comunidade que se coloca sob esse título não pode tolerar o erro nem de conduta nem de doutrina, impondo-se a necessidade de corrigir e, se preciso for, até expulsar aqueles que se sujeitam a quaisquer desses desvios (1Co 5.2,13). A figura do fermento mostra que disso depende a pureza e a saúde de toda a igreja. Por isso, ainda que medidas severas sejam muitas vezes necessárias para extirpar a influência má e crescente, deve-se lembrar que dessas medidas depende a sobrevivência do próprio grupo eclesiástico. De fato, a experiência mostra que a tolerância adotada muitas vezes em nome de uma noção errada de amor ou por causa do medo de ser taxado de “radical” tem, no fim das contas, um preço alto.  Basta observar que igrejas que no passado deram pouca importância a pequenos desvios práticos e teológicos, considerando-os inofensivos, hoje se vêem marcadas por um quase irremediável ambiente mundano e também por grosseiras heresias instaladas nas mentes de seus membros. Eis o efeito do fermento! Sua ação silenciosa e lenta faz com que os danos que produz se alastrem por sobre tudo e sejam percebidos tarde demais. Daí a necessidade de lançá-lo fora com urgência (1Co 5.7), por mais que isso gere dissabores e desgaste emocional.

Paulo sabia que a doutrina dos falsos mestres judaizantes tinha o potencial de corromper por completo as igrejas da Galácia. Isso, porém, ainda não tinha acontecido (5.1-2), e o Apóstolo estava confiante que seu ensino prevaleceria sobre as falácias dos legalistas (10). Sabendo que escrevia a crentes genuínos, Paulo acreditava no arrependimento dos galateus e no seu retorno à Sã Doutrina. Essa sua confiança era fundamentada “no Senhor”. Isso significa que Paulo cria que o arrependimento dos seus leitores seria, em última análise, obra de Deus no coração deles. O Apóstolo tinha plena certeza em seu íntimo que o Senhor não deixaria seus filhos vagando pelas sendas da mentira.

Ainda no v. 10, Paulo afirma: ”Aquele que os perturba,[5] seja quem for, sofrerá a condenação”.  O uso do singular não significa que havia somente um falso mestre atuando entre as igrejas. Em 1.7, 4.17, 5.12 e 6.12 Paulo deixa claro que havia um grupo presente ali. Certamente, portanto, o singular foi usado para referir-se ao líder desse grupo ou ao mais influente entre os legalistas. Sem dúvida, esse indivíduo se apresentava como detentor de grande autoridade doutrinária, um rabino acima da média que, com seus ares de grande intelectual associados às suas técnicas de bajulação, havia conquistado uma posição de alto prestígio entre os irmãos. Paulo mostra, no entanto, que, independentemente da posição que ocupava, aquele homem seria castigado. A expressão “seja ele quem for” indica que sua suposta autoridade não teria valor algum diante do Deus que o condenaria por desviar as igrejas da verdade.

A palavra traduzida como “condenação” (κρίμα) tem aqui o sentido de punição. No versículo sob análise o termo aparece associado a um verbo cujo significado é “carregar” (βαστάζω, também usado em 6.2,17). É possível, portanto, que Paulo esteja dizendo que Deus lançaria um grande fardo sobre a vida daquele homem, desconsiderando totalmente a sua posição de preeminência. Isso porque, para Deus, o bom ministro não é necessariamente o que se destaca, mas sim o que é fiel (1Co 4.1-2) e não se pode deixar impune o homem que, aproveitando-se de sua posição privilegiada, conduziu o povo santo para longe da verdade, causando prejuízos incalculáveis para a causa do Reino (1Co 3.17).

Concluindo o parágrafo em análise, Paulo deixa transparecer uma das acusações que os falsos mestres dirigiam contra ele, a saber, a de que ele pregava a circuncisão quando isso era conveniente. Ao que tudo indica, os judaizantes diziam que a mensagem de Paulo era oscilante, pendendo para este ou aquele lado, dependendo das circunstâncias e sempre com o intuito de evitar oposição e cair no agrado de todos. Paulo já se defendera dessa acusação em 1.10. Agora ele o faz novamente, desta vez demonstrando o quanto ela ia contra as mais claras evidências. Assim, no v. 11 ele diz: Irmãos, se ainda estou pregando a circuncisão, por que continuo sendo perseguido? 

É óbvio que Paulo tem em mente aqui, especificamente, a perseguição dirigida contra ele pelos adeptos do judaísmo. Por que estes o perseguiam se sua mensagem se ajustava às suas convicções? Ora, a perseguição contra Paulo por parte dos judeus era um fato inegável. Aliás, na própria região da Galácia, quando as igrejas a quem escreve foram fundadas, ao tempo da Primeira Viagem Missionária, o Apóstolo encontrou terríveis obstáculos entre os seus compatriotas exatamente porque sua pregação contradizia a expectativa reinante entre eles de que o homem pudesse ser justificado pelas obras da Lei, e enfatizava unicamente a necessidade da fé em Cristo (At 13.49-50; 14.1-2). Logo, os próprios galateus tinham sido testemunhas da perseguição que Paulo sofrera quando anunciou pela primeira vez o evangelho entre eles (At 14.19-20) e puderam perceber o quanto sua mensagem incomodava os adeptos do judaísmo. Como agora podiam crer que ele era um pregador que mudava o conteúdo do seu discurso a fim de evitar problemas com os supostos seguidores de Moisés?

É verdade que Paulo tinha grande disposição em evitar ferir os escrúpulos dos judeus e, assim, criar barreiras desnecessárias ao anúncio do evangelho (At 16.1-3). Contudo, esse modo de agir estava muito longe de ser uma forma de anunciar a necessidade da circuncisão como os falsos mestres diziam que Paulo estava fazendo. A perseguição que o apóstolo sofria era evidência de que não era esse o caso, pois se sua mensagem incluísse a salvação pela guarda da Lei, o “escândalo da cruz” cessaria.

“Escândalo” (σκάνδαλον) significa, literalmente, armadilha. É uma palavra usada no NT para fazer referência ao incitamento ao pecado (Mt 16.23; 18.7; Rm 16.17). A partir desse significado básico, o sentido se estende a ponto de abranger qualquer coisa que cause repulsa ou reprovação. Esse é o sentido adotado no v. 11. “Escândalo da cruz” é, portanto, a indignação que a mensagem da cruz gera. De fato, para o judeu, essa mensagem causava repugnância como algo que induzia os outros ao erro, a tal  ponto que incitava sua oposição (1Co 1.23). Se Paulo pregasse a circuncisão, essa repulsa deixaria de existir; o escândalo cessaria e com ele a perseguição. Ora, a constante inimizade dos judeus contra Paulo era a prova de que isso jamais tinha acontecido.

Naturalmente, acusações tão absurdas contra Paulo geravam em seu íntimo a mais intensa indignação. Por isso, com mordaz ironia ele termina o parágrafo insurgindo-se abertamente contra seus covardes caluniadores (12). O Apóstolo se refere a eles como pessoas que provocam tumulto e agitação. Em 1.7 e 5.10 os mestres judaizantes já foram descritos como pessoas que perturbam. Agora, um outro verbo é usado (ἀναστατόω), cujo sentido é semelhante. De fato, Paulo sugere que os mestres legalistas eram instigadores de tumulto. Sendo assim, ironicamente faz votos de que aqueles homens que eram tão radicalmente afeiçoados à circuncisão até o ponto de conduzir a igreja à rebeldia, também fossem radicais na realização do ritual e se castrassem de uma vez por todas![6] Diziam que ele pregava a circuncisão. Eis aí, portanto, a circuncisão que Paulo prega! Que os mentirosos agora façam uso dela.

A reação de Paulo diante da mentira que tentava corromper o evangelho e também sua própria reputação pode parecer demasiadamente severa. No entanto, aprendemos na Escritura que na defesa da verdade, ainda que deva predominar a mansidão no coração dos seus expoentes (2Tm 2.24-25; 1Pe 3.15-16), há situações que exigem a tomada de atitudes mais rígidas. Nos escritores do NT essa rigidez aflora sempre que a paz, a pureza e a sã doutrina são fortemente ameaçadas, colocando a igreja em constante e real risco de destruição (1Co 3.1-3; 5.13; Tt 1.10-13; Tg 4.4; 2Pe 2.1ss; 3Jo 9-10).

Pr. Marcos Granconato 



[1] Paulo usa a metáfora da corrida também em 2.2, aplicando-a a si mesmo. Veja-se também Filipenses 2.16; 2Timóteo 2.5; 4.7.

[2] O verbo usado por Paulo, ἐγκόπτω, significa impedir, obstruir ou deter. Trata-se de um termo militar que descreve um exército que impede o avanço do inimigo destruindo uma estrada e levantando obstáculos. Usada na figura de uma corrida, como é o caso aqui, a palavra sugere a ação de um atleta que tenta prejudicar o desempenho de outro, atrasando-o de alguma forma ou até mesmo tirando-o da prova.

[3] É preciso, contudo, reconhecer que o uso do particípio conforme consta do v. 8, implica muitas vezes num sentido indefinido, sendo também possível que Paulo tenha em mente aqui o chamado de Deus ocorrido ao tempo da conversão (1Co 1.26; 7.18). Se for esse o caso, é interessante notar que, em Gálatas, os crentes são apresentados como pessoas que, ao ouvirem o evangelho, foram chamadas à liberdade (5.13).

[4] Também no ensino de Jesus a figura do fermento é usada para se referir a doutrinas e práticas reprováveis (Mt 16.6, 12; Mc 8.15; Lc 12.1). Há uma exceção em Mateus 13.33

[5] Veja o comentário em 1.7 sobre o verbo ταράσσω  (perturbar), também usado aqui.

[6] No paganismo dos dias de Paulo existiam rituais grotescos cujo ápice era atingido quando os adoradores se emasculavam. Se o Apóstolo tinha esses rituais em mente, pode-se concluir que para ele a circuncisão não tinha mais significado do que as repugnantes práticas religiosas dos gentios.

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