Terça, 16 de Abril de 2024
   
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Gálatas 4.1-7 - O Fim da Escravidão

 

A menção da figura do herdeiro em 3.29 dá ensejo a que Paulo, no início do capítulo 4, transporte essa figura para a experiência humana comum, a fim de acrescentar outras verdades àquelas que já enunciou ao longo da carta até este ponto. O Apóstolo, no texto agora em análise, fala da condição prévia de todos os homens, tanto judeus como gentios, que Deus haveria de salvar. Tais pessoas são comparadas a filhos menores que aguardam, sob tutela, a maioridade para que, então, desfrutem plenamente do status de herdeiro. A figura pretende ilustrar o fato de que aqueles que Deus haveria de salvar estiveram sujeitos a sistemas morais e religiosos diversos até o tempo que Cristo se manifestou. Tendo chegado esse tempo, não há mais porque submeter-se a tais sistemas.

É já nos vv.1-2 que Paulo apresenta a figura do herdeiro menor. No afã de realçar sua condição de sujeição, o Apóstolo diz que, ao longo do período de menoridade, o herdeiro em nada difere do escravo, estando sob o controle e as ordens de tutores e curadores[1], estendendo-se essa situação até o tempo que ao pai aprouver.[2] 

Paulo quer mostrar com a figura constante dos vv.1-2 que o ser humano teve, ao longo da sua história, o seu tempo de menoridade. Foi o tempo que esteve sujeito de modo servil aos “rudimentos do mundo” (3). Precisamente nesse ponto, Paulo deixa de falar somente da Lei Mosaica como fator opressor. O jugo dessa Lei era sentido apenas pelos judeus. Paulo tem agora a humanidade inteira em mente (Veja-se v. 8). Segundo ele, não somente quem estava sob o sistema judaico vivia curvado em sujeição, mas todos os seres humanos, uma vez que se encontravam debaixo do jugo dos “rudimentos do mundo”.

A expressão “rudimentos do mundo” (στοιχεῖα τοῦ κόσμου) aponta aqui para as regras e crenças elementares que estão presentes nas diversas expressões da religiosidade humana. Nos vv. 9-10 vemos exemplos desses “rudimentos”, os quais, segundo o Apóstolo, escravizavam tanto quanto a Lei de Moisés. Também na Epístola aos Colossenses, onde Paulo combate especialmente o proto-gnosticismo asceta, pode-se ter um vislumbre da natureza dessas regras impostas aos homens, denominadas também ali como “rudimentos do mundo” (Cl 2.8, 20-23).

O tempo de submissão a tais preceitos, contudo, perdeu sua razão de ser com o advento de Cristo. Em sua soberania, Deus determinou que chegasse ao fim a fase da história em que as pessoas deveriam ser regidas em sua religiosidade por normas oriundas da Lei Mosaica (no caso dos judeus) ou da consciência humana (no caso dos gentios). Então ele enviou seu Filho (4), a fim de livrar da escravidão os que estavam sob qualquer fardo legal[3] e fazer deles membros de sua família (5).

Falando especificamente sobre o v. 4, deve-se notar que a expressão “plenitude do tempo” corresponde ao “tempo determinado pelo pai” mencionado na ilustração constante dos vv. 1-2. Plenitude do tempo é, portanto, a fase da história que Deus em sua soberania julgou por bem enviar seu Filho ao mundo, pondo fim ao tempo de tutela das leis. Não nos é revelado na Sagrada Escritura as razões pelas quais o Senhor não enviou Cristo antes, mantendo os homens em trevas durante milênios.[4] Somente nos é dito que o evangelho foi guardado como um mistério, havendo a possibilidade de um certo grau de conhecimento dele por meio das escrituras proféticas (Rm 16.25-27). Os motivos específicos, porém, pelos quais a Deus aprouve revelá-lo ao tempo que o fez estão guardados em sua mente, sendo impossível conhecê-los.[5]

O que vem a seguir no versículo 4 é de extremo valor para a cristologia. A frase “Deus enviou seu Filho”, implica a divindade de Cristo, pois sendo Filho de Deus ele é igual a Deus (Jo 5.17-18). A frase também implica a pré-existência de Cristo. Deus antes o enviou para que então nascesse de mulher. Sua geração no ventre de Maria, portanto, não deu origem à sua existência. Ele já existia antes da encarnação (Jo 1.1-3; 8.58; 12.41 [cf. Is 6.1]; 17.5; Cl 1.16-17).

É notável ainda que Paulo se refira a Cristo como “nascido de mulher”. Isso, acrescido da verdade de que ele é o Filho de Deus, desemboca na doutrina das duas naturezas de Cristo. Ele é Deus-homem.  É o Filho de Deus e o Filho do Homem (Jo 5.26-27). Todo o Novo Testamento afirma a realidade tanto da natureza humana como da natureza divina em Cristo, ainda que não esclareça o modo como elas se relacionam (Jo 1.14; At 20.28; Rm 9.5; Hb 2.14).  A união das duas naturezas na pessoa singular e única de Cristo é chamada tecnicamente de União Hipostática.[6]

O v. 4 termina com a afirmação de que Cristo nasceu “sob a Lei”, ou seja, Cristo colocou-se debaixo da Lei, sujeitando-se a ela. Sua humilhação não se manifestou apenas no fato de fazer-se carne, mas também no fato de fazer-se servo obediente (Fp 2.5-8). Assim como assumiu nossa humanidade, porém sem pecado (1Jo 3.5), também assumiu nossa escravidão, porém sem desobediência (Mt 5.17; Rm 5.19).

Qual foi a intenção do apóstolo ao mencionar esses aspectos relativos ao advento de Cristo. Por que dizer que Cristo nasceu de mulher e sob a Lei? O Apóstolo quer, sem dúvida, mostrar Cristo como o substituto perfeito do homem. Paulo apresenta Jesus como um homem verdadeiro debaixo de um jugo verdadeiro. Como tal Cristo pôde participar do drama humano e substituir perfeitamente o homem ao morrer sob a Lei, submetendo-se inclusive à maldição que ela impõe aos que a desobedecem (3.13). Portanto, a plena substituição é o que Paulo tem em mente aqui. Foi essa perfeita substituição que tornou possível o resgate dos que estavam sob a lei (5). A destruição da heresia gálata dependia da demonstração de que o Filho de Deus, fazendo-se homem, colocou-se sob a Lei de Moisés até o ponto de provar o castigo aplicável aos desobedientes. Essa sua obra, tendo um caráter substitutivo (3.13), libertou o homem do jugo legal, não havendo mais qualquer razão para que as igrejas da Galácia novamente o tomassem sobre os ombros.

O Filho de Deus fez-se homem e nasceu sob a Lei a fim de “resgatar os que estavam sob a lei” (5).  Nessa condição estavam todos os homens, tanto judeus, debaixo da Lei Mosaica, quanto os gentios, debaixo dos rudimentos do mundo (vv. 3, 8-9). Paulo afirma que a encarnação e auto-sujeição de Cristo tiveram por propósito resgatar o ser humano dessa situação. Resgatar é livrar mediante o pagamento de um determinado preço. Ora, é sabido que o preço pago para o livramento do homem foi o sangue do próprio Filho de Deus (At 20.28; 1Pe 1.18-19; Ap 5.9). Assim, nos vv. 4-5, o Apóstolo faz alusão à encarnação de Cristo, ao seu ministério terreno e à sua morte e explica que o alvo disso tudo foi libertar o homem da escravidão. Que grande absurdo seria agora os próprios crentes em Cristo se sujeitarem aos ditames de leis estéreis!

Segundo o v. 5, a obra de resgate não é o estágio final na salvação do ser humano. Ao contrário, o resgate é o caminho para a realização de um bem ainda maior: Deus livra o escravo para adotá-lo como filho! Ele não somente o desobriga dos deveres da escravidão, não somente tira-lhe dos ombros o jugo da servidão, mas vai além e o recebe em sua casa, incluindo-o em sua própria família. Tira-lhe as correntes, mas não o despede. Antes, abre-lhe as portas, cobre-o com finas vestes, põe-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés (Lc 15.22).

Por serem filhos de Deus os crentes recebem o Espírito Santo (6). Paulo mostra aqui que a adoção implica a habitação (Rm 8.9). No v. 6 o Espírito Santo é chamado “Espírito do seu Filho” porque o Apóstolo quer realçar a intensidade da filiação do crente. O cristão é filho de Deus num sentido tão amplo que a ele é dado o Espírito do verdadeiro Filho, o Espírito do único Filho que é consubstancial ao Pai. O efeito disso é que o crente “se sente” filho. Ele não tem a sensação de ser um estranho na casa do Pai; não se sente inadequado e sem liberdade para se achegar a ele e desfrutar de sua intimidade. Em vez disso, movido pelo Espírito do Filho que nele habita, aproxima-se do Senhor e clama: “Aba[7], Pai!”, expressão que denota relacionamento íntimo e afinidade com Deus.

Esse mesmo ensino é encontrado também em Romanos 8.14-16. Nesse texto vemos que a habitação do Espírito, além de estimular a intimidade com o Senhor, faz com que o crente viva sob a direção da Terceira Pessoa da Trindade, livre do domínio da carne e do medo. Ademais, por meio dessa habitação, o crente recebe o testemunho interno do Espírito que lhe traz a certeza de ser alguém que pertence à família de Deus.[8]

O v. 7 encerra o desfecho do pensamento de Paulo nesse parágrafo: o crente não é mais escravo. Agora é filho! Para os galateus essa afirmação tinha o propósito assumido de varrer de suas mentes qualquer forma de doutrina que refletisse ainda que a menor sombra de escravidão. Abraçar uma doutrina assim seria andar em desconformidade com a própria posição a que, pela obra do Filho de Deus, o crente foi alçado. 

Tendo ficado para trás o tempo de escravidão, e desfrutando agora aquele que crê da posição de filho de Deus, os benefícios de que desfruta não se limitam à presente era. Sendo filho ele é herdeiro (7). Pelo próprio Deus foi elevado a essa condição. Como filho que é, desfruta agora da liberdade e amanhã se regozijará na herança (Gl 3.29; Rm 8.17).

Pr. Marcos Granconato 



[1] O tutor, na lei romana, figurava como responsável pela criança até os 14 anos. O curador respondia pelo jovem até que completasse 25. Há ainda quem entenda que o tutor cuidava da pessoa, enquanto o curador administrava seus bens.

[2] A maioridade, na lei romana, era atingida aos 25 anos de idade. Não estava, portanto, ao arbítrio do pai o tempo de sua duração. Assim, é possível que Paulo tinha em mente aqui um outro sistema jurídico desconhecido de nós, mas familiar aos seus leitores originais. É também possível (e mais provável) que o apóstolo queria apenas realçar o papel do pai como aquele que está no controle da situação. Esse entendimento se harmoniza melhor com as intenções do autor bíblico ao usar a presente ilustração.

[3] A ausência de artigo antes da palavra “lei” no v. 5, sugere que Paulo não tinha em mente aqui somente e Lei Mosaica, mas qualquer conjunto de normas imposto ao homem.

[4] Todos esses milênios compõem o período chamado de “tempos da ignorância” (At 17.30).

[5] Earle E. Cairns, em O cristianismo através dos séculos (São Paulo: Vida Nova, 1984. p. 29-36) afirma que a “plenitude dos tempos” em Gálatas 4.4 diz respeito à preparação do cenário mundial de tal forma que contribuísse para que a mensagem de Cristo tivesse o maior impacto possível. De acordo com esse entendimento, Deus, ao longo dos séculos, foi preparando o ambiente político, intelectual e religioso para que o advento do Messias ocorresse num contexto que favorecesse a sua divulgação. O tempo em que tudo estava pronto seria entendido como a “plenitude dos tempos”. No entanto, apesar de não haver dúvidas de que Deus usou o ambiente instalado no século I para favorecer a expansão da fé, é muito difícil que isso se relacione com o sentido da expressão “plenitude dos tempos” pretendido por Paulo em Gálatas 4.4. O entendimento mais natural e simples, à luz inclusive do v. 2, é que a expressão diz respeito apenas ao tempo em que soberanamente Deus julgou necessário livrar o homem do jugo da lei, determinando que o período de “tutela” não devia mais se prolongar.

[6] Hipóstase, em grego, significa, essência ou natureza substancial. Na discussão cristológica, contudo, esse termo é usado predominantemente com o sentido de “pessoa”. Para conhecer melhor os contornos dessa matéria é fundamental que sejam estudados os quatro concílios ecumênicos da igreja antiga e, especialmente, a Definição de Calcedônia. Uma leitura esclarecedora é OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001.

[7] Aba é o termo aramaico para Pai.

[8] Outras verdades sobre a habitação do Espírito Santo são as seguintes: ela é dada aos que crêem (Jo 7.38-39; Gl 3.2); todos os crentes desfrutam dela (1Co 12.13); ela se constitui numa das bases para a pureza sexual do cristão (1Co 6.18-19); e ela é a garantia de que somos “propriedade” de Deus (Ef 1.13-14).

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